sábado, 17 de janeiro de 2015

Conto de Inverno

Cedo, muito cedo, antes das seis da manhã, já despertavam os sentidos, ansioso pelo destino, e pela missão desta jornada: ir ao encontro da chegada das primeiras neves de 2015. Um dos desígnios maiores de quem tem a paixão da montanha, dentro de si.

Chuva haveria decerto, mas íria ser de neve a partir de certo momento, tínhamos perto de certeza disso. Impermeabilização tinha sido preparada.

Ao encontro dos companheiros de jornada, habituados e pontuais, o frenesim vai aos poucos subindo de temperatura interior, à medida que desce a exterior. Chegados à Portela do Homem e devidamente autorizados, começamos a subida pelo Vale do Homem até às Minas dos Carris, onde a altitude ultrapassa os 1400m, a mesma fasquia que as previsões apontavam para a cota de neve. As Minas dos Carris, complexo abandonado desde os anos 70-80, localizam-se perto do ponto mais alto da imensa Serra do Gerês, o Pico da Nevosa a  erca de 1550m de altitude, uma das várias do parque nacional. (A história deste complexo, pode ser aprendida com a leitura do livro: "Minas dos Carris - Histórias Mineiras na Serra do Gerês", da autoria de Rui C.Barbosa.)

Já desde o início a chuva caía, servida pelo vento e aos poucos, ía-se entranhando nas mãos e pés, mas em bom ritmo,o grupo ganhava à altitude, contando vislumbrar os primeiros flocos ao passar o Madorno.

Nada. Apenas o frio a aumentar, sempre potenciado pela incessante chuva. Passando a Ponte das Águas Chocas e as Abrótegas, o único alento já só era chegar ao único local abrigado no complexo abandonado das minas, um rectângulo de granito, aberto de um lado na porta, e com duas janelas pequenas abertas ao universo. Por baixo da antiga cozinha de apoio à casa do pessoal da mina, este refúgio em bruto, estreito, húmido e gotejante, frio, ventoso e de intrigante silêncio, era neste caso, objecto das energias dos caminhantes apressados; apressados por quase 10km de intempérie crescente. As minhas mãos já estavam congeladas faz tempo por baixo das luvas encharcadas; e creio que por vezes apenas me esquecia disso, pela atenção que devia ser dada a cada passo no caminho escorregadio, molhado, encharcado e muito irregular que em tempos serviu a comunicação com as Minas dos Carris. Pior do que ter os dedos doridos do frio, sería impor aos meus companheiros, a ingrata missão de me ajudarem a regressar com um tornozelo torcido ou pior. Prossigamos portanto.

Cada um no seu ritmo de passada, fomos chegando ao local de almoço, a seguir às ruínas do refeitório dos quartos para casais e a prioridade agora sería, em condições miseráveis, transformar aqueles momentos, em algum conforto de calôr que nos pudesse aquecer para a segunda metade da jornada, que se antevia ser ainda pior, dado que a temperatura estava a baixar. A moral das tropas não era obviamente a melhor. Embora todos experientes, o grupo estava demasiado concentrado em cozinhar algo quente, do que para grandes conversas. A temperatura aqui, perto do cimo da serra era bem mais fria.

Todos sabíamos, que este era apenas o ponto em que teríamos de nos preparar para o inevitável regresso até aos carros sem ver neve. O frio entranhava-se, e mal acabámos de comer algo quente, logo teríamos de por botas ao caminho para gerar calôr, ainda que indo de encontro à cara do inimigo, lá fora. 



Se para cá, o caminho era encharcado e escorregadio, para lá, o caminho mudava de nome; agora era um verdadeiro ribeiro de muitos km, e a cerimónia de pôr o pé na água, era coisa do passado. Ao sair do complexo mineiro, a chuva era de granizo e estava de frente para nós. A cara doí-a também, agredida que era.
Agora a pressa de chegar aos carros impunha-se, e sem alternativas melhores, o trilho era pelo meio da água. Pelo caminho, pudémos testemunhar a transformação dos vários cursos de água e o aparecimento de novos. A natureza na sua máxima potência, até então vista. Rios descambavam dos cumes em cascatas poderosas. paredes inteiras de água rugiam e o Rio  Homem tinha triplicado o seu caudal e o espectáculo, quase impossível de registar nas máquinas, ficava gravado nas retinas. A lagoa perto da ponte ao incío do estradão, tinha desaparecido para dar lugar, a espuma branca da força do rio a precipitar-se poderoso sobre ela. 

A descer os 10km, em 2h, lembro-me claramente de a temperatura do meu corpo começar a descer abaixo do que sentia ser o limiar aceitável. Já não eram apenas os dedos em dor, e os pés frios, e aqui, começei a invocar outras forças. Cantava do fundo dos pulmões, recitava e mobilizava toda a raça que podia, para me aquecer e erguer da miséria, e como que por milagre, os meus dedos voltavam a dar-me algum conforto. Olhava para trás a espaços, para os meus companheiros sempre sem parar, porque apenas alguns segundos de pausa era arrefecer mais um pouco. Quando chegámos aos carros, eu sabia que tinha atravessado os meus limites, e possivelmente iria ficar doente. Apanhei uma tosse e um pouco de febre dois dias depois, algo que não conhecia faz vários anos. Mas...o único sentimento que persiste sobre qualquer outro é o de gratidão. Gratidão pela amizade e entre-ajuda dos meus companheiros, pelo previlégio de ter sido testado, pela experiência de testemunhar a transformação da montanha no caminho de volta.

Impossível atingir maior felicidade sem passar pelo sofrimento,  e este dia, potenciou-a. Seguramente iremos apreciar ainda mais as actividades de natureza, pelo apreço maior que daremos aos dias mais secos. Caminhar na chuva gelada não é mesmo recomendável. Nestas condições o acesso à mochila ou qualquer tipo de operação é quase impossível.

Quem sabe um dia, não poderá ser concebido um abrigo de montanha neste, de outra forma, condenado a desaparecer, complexo imenso de velhas paredes, em que apenas, um estreito pedaço, um único entre tantos, tem ainda tecto. Um valor arqueológico a desaparecer, num dos locais mais visitados pelos caminheiros, e que talvez já merecesse um trilho interpretado.

Às gentes que habitaram aquele complexo mineiro em tempos agora idos, e que suportaram a difiçil vida nestas paragens, dirijo a minha homenagem, recorrendo também às palavras de um dos meus companheiros.

"Imagino o ruído do trabalho de há muitos anos, várias gerações... O trabalho que esventra a terra à procura do precioso metal... O suor dos homens, a pele coberta de pó, os pulões cheios de morte, a olhar o vazio quando de novo encontraram a luz do dia..."
(Rui Barbosa, No ponto mais alto...)


1 comentário:

Lírio disse...

Oh amigo!!! Como te compreendo!!! Passámos por uma situação idêntica, hà uns anos atrás, precisamente no mesmo local. Parámos como bem dizes no único local abrigado dos carris, e lembro-me de ingerir qualquer coisa rapidamente, sempre a mexer o corpo para não arrefecer!! Ficou-me na memória as mãos que já não conseguia fechar no regresso,o de não conseguir agarrar o bastão, os pés encharcados e já sem sensibilidade...a chuva parecia alfinetes gelados a espetarem nas pernas, e quando chegamos à viatura quase que nem me conseguia mexer para muda de roupa!!! O lugar dos Carris pode ser muito bonito, mas com muito frio e chuva gelada, é mesmo só para duros e masoquistas amigo, pois que de lá só guardo a recordação do dia que tive mais frio na minha vida!!!

Apesar de tudo bem te podes orgulhar, e os teus companheiros de jornada também, passaram no teste!!! ...Gente dura os montanheiros!!!

Um grande abraço

Lírio